terça-feira, 29 de setembro de 2015

A última carta para Francisco.

Criei tantas histórias para te justificar, menti aos deuses e a mim mesma dizendo que, tudo bem, no fim tudo daria certo do nosso jeito.

O nosso jeito funcionava assim, eu te justificava e te perdoava por erros e pecados que você nunca reconheceria. Busquei em você o amor que não tive de ninguém, nem se quer de mim mesma. Talvez esse tenha sido o meu maior erro. Indago ainda: será?

Por algum tempo, alguns meses, busquei - em vão - por respostas que me dissessem o por que de tudo. Pode não parecer agora, mas eu lhe tinha tanto amor...

Todo esse amor com o tempo ficou gasto, puído, como um pedaço de pano velho, gasto de tanto uso. Eu o nomeei "manchado", você ainda se lembraria se eu dissesse? Não sei em que parte do percurso ficou tudo assim, dolorido.

Acho que foi naquele setembro cinza em que enterrei, sozinha, nossa filha. Tuas lágrimas de crocodilo me convenceram na época, talvez até convencessem hoje, no fim de tudo eu só precisava saber que alguém sentia pelo menos uma parte do que me destruíra por inteiro.

Só que você é de pedra; pedra e mentiras.

Você me acusava de ser o reflexo daquilo cujo você recusava-se a enxergar. Eu era a imagem da tua essência, pintada com sangue pelas tuas mãos grandes. Quantas vezes tua boca profana me acusou de mentirosa, Francisco? Uma piada, deveria ser no entanto, visto que dos teus lábios só saiam mentiras.

Acho que tudo ficou dolorido quando você concedeu a si mesmo o papel de juiz. Lembraria se eu dissesse? Talvez não.

O fato é que eu me lembro, tá tudo aqui, Francisco, feito tatuagem na minha pele. As marcas que você, com o seu tipo único de carinho, fez questão de desenhar - uma a uma -. Naquele setembro cinza, eu me lembro, você julgou que eu não mais merecia teu amor. Eu insistia, dizia que o amava para ouvir toda a dor e crueldade implícitas no teu silêncio.

Qualquer dor, mesmo física, era melhor que não sentir nada.

Morri um pouco mais naquele mês. Um pouco mais do que achava possível.

Morri e, pior do que isso, enrijeci o coração.

Certa vez, uns anos depois, você me disse que não me reconhecia mais. Não gosta do que vê, Francisco? Ora essa, foi você mesmo quem pintou esse quadro.

A tua obra de arte sou eu, querido. Com toda essa acidez e amargura, o teu mais bonito quadro sou eu.

Hora ou outra você chegará até aqui e lerá isso, esse apanhado de farpas que guardei na garganta por um ano e alguns meses. Você me sentenciou a isso, mas eu te devolvo toda essa dor com, finalmente, perdão.

Você já não faz mais parte de mim. Atestei minha liberdade só ontem, tardou, mas veio. Alforriada sou, enfim!

Talvez um dia nos sentemos num café para falarmos sobre a minha dor, essa de quem é mãe, que você nunca conhecerá. Você é breu, em suas entranhas só habita teu ego, esse forte e imensurável bloco de uma suposta masculinidade carregada de misoginia. Isso tudo não me assusta, não mais.

"Livre do teu veneno eu sou mais pura", cito agora você mesmo.

Eu te amei. Amei mais do que todas as minhas palavras possam mensurar. E o amor que senti foi como um gole intenso de um vinho duro*.

Só queria que soubesse que todo esse tempo eu esperei apenas que dissesse que sentia, ao menos um pedacinho, da minha dor. Absolvi-me de toda a culpa por ter dado errado e me libertei, tudo o que aconteceu, não foi por minha escolha.

Sou a tua obra-prima, manchada da cabeça aos pés pelo teu não-amor. Por isso, me admiro e me absolvo. Esperei muito tempo por isso, agora, avante.

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*Vinho duro: É aquele que possui excesso de taninos. Por esse motivo, o mesmo deixa uma profunda sensação de amargor e secura no fundo da língua.

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